Mas, e as rugas do seu pai?

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    Durante uma tórrida tarde de domingo no Sertão brasileiro, um homem cortava lenha para o fogão de sua senhora. Os seis filhos corriam pela casa, deixando a dona desorientada com o tempero da refeição. Enquanto o homem calejava suas mãos com o machado, uma de suas crianças sentou-se em um toco próximo de onde ele estava e pôs-se a observá-lo. De repente, a menina começou a fitar as próprias mãos como se as mesmas não fizessem parte de seu corpo. O pai notou-a e cessou os cortes de lenha.
      — Mas o quê que há, menina?
      — Eu... eu odeio isso — retrucou a mocinha. 
    — Isso o quê? — perguntou o pai, já indignado com a figura da menina odiando algo enquanto rejeitava as próprias mãos.
      — Odeio quando minhas mãos enrugam, papai! — ela olhou para o homem.
      — E o que fez enrugarem suas mãozinhas?
    — Eu estava brincando com os meninos no rio, e quando saí da água, minhas mãos estavam assim.
    — Não se preocupe, pimpolha. Logo, logo elas estarão esticadinhas como o de costume — disse o homem, voltando a cortar a lenha.
    Relutante, a mocinha continuou com os olhos vidrados nas próprias mãozinhas. Novamente, o pai repousou o machado.
    — Se continuar assim, quando estiver da minha idade vai querer se livrar dos espelhos da casa. Pare com isso.
    — Ontem uma mulher disse no rádio que um moço alisou a pele dela — contou ela.
    — Alisou a pele dela? Você quer dizer, um médico lhe fez uma plástica?
    — Sim! Eu acho que... Sim, uma "pástica"! — Ela afirmou, vibrante.
    — Plástica.
    — Isso aí. Posso fazer isso nas minhas mãos, papai?
    O homem riu, com a face corada do sol agressivo.
    — Você é uma criança. Crianças não fazem plásticas — ele disse, voltando a cortar a lenha.
    Parou com o machado, novamente.
    — Ninguém deveria fazer plásticas, isso vai contra a ordem natural das coisas.          
    — Como assim?
    O homem largou de seu machado, limpou as mãos na calça e sentou-se junto à filhinha. 
    — Todo mundo vai ficar com a pele enrugada um dia.
    — Por que? — ela finalmente abaixou as mãos e prestou os olhos ao pai.
    — Por que todos envelhecemos.
    — Mas se um médico alisa sua pele, você não precisa mais envelhecer, papai. A mulher do rádio disse que as rugas são feias, elas deixam as pessoas diferentes.
    — Deixam. Mas elas têm um significado, todas elas.
    — As rugas?
    — Sim.
    — O senhor tem muitas.
    — Eu sei — disse o pai, sorrindo. — Agora, toque nelas. Toque nas rugas do papai.
    A menininha colocou levemente as mãos miúdas nas bochechas do pai, e começou a acariciá-las suavemente.
    — Como elas são? — Perguntou o homem.
    — São fundas. Mas o que elas dizem? Você disse que elas dizem alguma coisa.
    — Elas contam toda a minha história, a história de sua mãe, a sua e a de seus irmãos.
    — Papai, suas rugas falam? — indignou-se a menina.
    — Falam. Você não pode ouvi-las, mas pode senti-las.
    Ela tocou as rugas laterais da boca do pai.          
    — O que estas duas rugas dizem?
    — Elas dizem que eu amo todos vocês. Sabe por quê? Por que quando cada um de vocês nasceu, eu sorri durante meses seguidos! E cada um desses sorrisos foi deixando suas marcas em meu rosto, até que ficassem tão profundas quanto você pode sentir agora.
    Os olhos da menina se acenderam.   
     — E essas, nos cantos dos seus olhos?
    — Essas foram deixadas aí por todas as vezes que o papai chorou de tristeza. Cada uma delas representa um momento triste da minha vida.
     — Então... ninguém conheceria o senhor se tirasse essas rugas?   
    — Ninguém. Estas marcas, pimpolha, são todo o meu passado, o nosso passado. Não se deve temer às rugas. Quem tenta esconder suas rugas, tenta esconder seu passado; quem tem vergonha de suas rugas, tem vergonha de seu passado, tem vergonha de ser quem é e de ter sido quem foi um dia. 
    Ele sabia que naquele momento talvez ela não compreendesse plenamente aquelas palavras, mas que um dia ela refletiria nelas e, nesse momento, elas se encaixariam perfeitamente em sua cabecinha pensante.
    — Eu não tenho vergonha das suas rugas, papai; e nem das minhas! As minhas contam que tomei banho de rio! — disse a mocinha, estendendo as mãos para que o pai as olhasse. — E quando as minhas aparecem de verdade? 
   — Quando tiver idade suficiente. Mas quando elas aparecerem, jamais se envergonhe delas, porque as rugas são a beleza em braille.
    A menininha sorriu e abraçou o pai.
    — Papai?
    — Sim.
    — Suas rugas são lindas. 



 (Dedicado ao homem mais importante do mundo, meu herói: meu pai).







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· 11/04/2011 ·